No dia 5 de junho a Netflix lançou mais três episódios da sua famosa e aterrorizante série sobre um futuro bem dramático. Tirando as palavras "aterrorizante", "futuro" e "bem dramático" da primeira frase, o restante da primeira sentença está correto.
Black Mirror não trata do futuro. Ela trata do presente. Assim como várias outras narrativas que conceberam um imaginário sobre o "futuro", como por exemplo 1984, de George Orwell; ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; e o mais recente O círculo, de Dave Eggers, o que estava em questão era o presente, o que atormentava as pessoas naquela época em que foram escritos como a evolução da genética, o pós-guerra, as ditaduras, o controle da mídia, a evolução das tecnologias de informação. Em O círculo, podemos encontrar todos os traços do quartel da informação, centralizado em poucas mãos, e todas as possibilidades de arranjos políticos e econômicos que advém do controle de informações e dados sobre toda e qualquer pessoa que use as redes sociais e qualquer aplicativo instalado no seu smartphone. Não tem nada de novo.
Um dos episódios novos se passa em 2018, o "Smithereens", e banaliza a vida de um motorista de aplicativo (Andrew Scott) que tem como objetivo acabar com a rede social que "dirije" a vida de todo mundo. Na verdade, a vida dele não fazia mais sentido e ele queria ser ouvido pelo homem mais poderoso do mundo, o criador da rede Smithereens (Topher Grace). Meninos publicando o evento nas redes sociais, perseguições e as polícias em guerras egoicas: nada de novo até aqui. A graça está na atitude do criador da rede que se esconde no topo de uma montanha, onde ninguém pode encontrá-lo (só sua subalterna direta), durante vários dias seguidos, meditando sem qualquer mídia em seu entorno para um processo de desintoxicação. Aquela velha máxima do "médico não toma remédio" e dos filhos dos executivos do Google que estudam em colégios Waldorf sem computador ou mídias distratoras.
"Rachel, Jack and Ashley, Too", coloca Miley Cyrus vivendo na sua própria pele: uma adolescente famosa e cheia de dramas familiares, drogas legais e as estratégias necessárias para um famoso manter sua reputação (e a memória dos fans). Está ligado diretamente com a superstar oriental Hatsune Miku - o nome vem da união das palavras em japonês "o primeiro" (初, hatsu), "som" (音, ne) e "futuro"(ミク, miku) - , o holograma que leva multidões para shows no Japão para assistir a vocalóide sintetizada e cujas músicas são composições curadas de seu fandom. Uma verdadeira loucura. Sua bonequinha virtual holográfica inclusive já se casou com um japonês que teria investido 17 mil dólares no casamento.
Assim como no episódio de Black Mirror, a pequena representação holográfica, ligada à internet das coisas é capaz de se comunicar de forma inteligente com seus donos. Elas nasceram com a carinha da Hatsune Miku, mas ganharam formas que podem ser personalizadas a gosto do freguês. Ficam em suas redomas de vidro (em referência à rosa do Pequeno Príncipe) e devem ser cuidadas, devem compartilhar coisas, se ligam aos telefones e computadores e interagem com seus donos o dia todo. Vem sendo chamadas de namoradas virtuais e podem ser adquiridas por R$ 5 mil e mais uma assinatura de R$ 54,00 mensais.
No episódio a boneca da superstar representada por Cyrus, com a sorte de ser encontrada por uma menina muito engenhosa que observava experiências com ratos, consegue destravar o consciente da cantora, fazendo com que a boneca seja "a própria Ashley", e não a boneca "Ashley Too". A ideia é a mesma do episódio "White Christmas" em que Jon Hamm dialogando com inteligências artificiais dentro de um cookie. Esse episódio é de 2014, chamado de Especial, entre as temporadas 2 e 3, e trabalha o consciente digital de formas "uteis" para o indivíduo assoberbado contemporâneo ou para a comunidade, na forma de combate ou resolução de crimes. Replica a ideia do duplo, do clone, do ciborgues que possa dar conta de atividades por nós, que sejam idênticos a nós mesmos e capazes de satisfazer todos os nossos desejos e necessidades. Não é uma ideia nova, mas ganha potência com a internet das coisas e suas possibilidades. Ao mesmo tempo, indica alguns sintomas da sociedade: como a solidão e a ansiedade, por exemplo.
Não menos hollywoodiano com a atuação de Anthony Mackie (Vingadores) e Yahya Abdul-Mateen II (Aquaman), "Striking Vipers" faz uma menção ao episódio "USS Callister", em que os jogos com uma realidade superaumentada são capazes de serem vivenciados a pêlo pelos avatares com o uso de um pequeno aparato. Os olhos petrificam e o jogador entra no mundo do jogo, com características desenhadas e projetadas, impossíveis na vida real. Os dois episódios brincam com a ideia de que aquilo que não pode ser feito na realidade deve ser feito nos jogos, seja prazer ou poder, ou prazer advindo do poder. Bem, esse argumento também é defendido por Jane Mcgonigal, autora da obra "Reality is broken", em que defende que o apelo dos games é insuperável, justamente pela sua condição de descolamento da realidade: "a realidade é chata, as regras não são claras, as recompensas não são capazes de nos satisfazer, não nos conectamos aos outros verdadeiramente". Se pensarmos a partir de Mcgonigal, a conexão entre os dois amigos só era verdadeira no "jogo", na "realidade", a amizade era uma farsa.
Merece ser visto porque, assim como nossos clássicos da literatura, Black Mirror está sugerindo os problemas sociais e seus desdobramentos. Todas as suas variações são muito possíveis, muitas delas já existem, como o sistema de validação para crédito (Nosedive e01, s03), e outras em desenvolvimento, como a experiência virtual de Playtest (e02, s03) para jogos imersivos em simuladores de ambientes.
Para quem gosta e quer saber mais, o professor André Lemos publicou o livro "Isso (não) é muito Black Mirror", pela Edufba, em que ele analisa cada um dos episódios até a quarta temporada.
Black Mirror é sobre o presente, é uma crítica fascinante, e drama quem faz é o ser humano mesmo.
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